Bebeto de Freitas: “o esporte brasileiro não existe”

Bebeto de Freitas já era um consagrado treinador de vôlei, com medalhas de prata na Olimpíada de 84 e no Mundial de 82, quando enfim entregou os pontos e deixou o emprego de professor de Educação Física concursado do Estado do Rio de Janeiro. Isso ocorreu em 1990, quando aceitou o convite do Maxicono Parma, pelo qual conquistaria cinco títulos, o que o catapultou ao banco da seleção italiana. Comandando a Azzurra, Bebeto foi campeão do Mundial de 1998.

Os 17 anos de aulas em várias escolas do Rio não lhe deixaram saudades. Desde então, viveu os últimos anos como treinador, passou duas vezes pelo Atlético Mineiro, como manager e diretor executivo, e foi presidente do Botafogo entre 2003 e 2008. Vinte e sete anos depois de deixar o cargo de servidor, o sobrinho de João Saldanha, primo de Heleno de Freitas e pai de Rico de Freitas, treinador das medalhistas olímpicas Ágatha e Bárbara, exerce um cargo público, o de secretário municipal de Esporte e Lazer de Belo Horizonte, a convite do amigo Alexandre Kalil, prefeito da capital mineira.

Idealista, Bebeto foi um dos primeiros a peitar Carlos Arthur Nuzman, que foi presidente do Comitê Olímpico do Brasil de 1995 a 2017. Crítico severo das mazelas do esporte brasileiro por décadas, o ex-treinador tem agora a oportunidade de contribuir para que a população belorizontina tenha mais acesso ao esporte, e parece muito empolgado com essa perspectiva.

Confira abaixo a entrevista com essa voz dissonante que nunca fez questão de fazer parte do coro dos contentes do vôlei:

Portal da Educação Física: Bebeto, você foi professor de Educação Física por muitos anos. O que poderia nos dizer a respeito das alegrias e tristezas que encontrou na profissão?

Bebeto de Freitas: Foi por volta do final de 1973, começo de 74, que resolvi prestar concurso para professor do Estado do Rio. Na época eu jogava pela seleção brasileira, e era um emprego que me servia bem, eu tinha dispensa do trabalho para poder defender o Brasil. Não tenho do que me queixar quanto a isso. Mas do ponto de vista de possibilidades de trabalho e estruturação, deixava muito a desejar. Víamos que não iríamos a lugar comum. Não tinha área compatível para o esporte nas escolas. Meus alunos de 14, 15, 16 anos, não tinham nenhuma atividade física condizente com aquilo que o adolescente precisa. Já tínhamos, na época, pesquisas que demonstravam os benefícios do esporte, inclusive no sentido do desenvolvimento intelectual. Mas não havia nenhuma possibilidade de desenvolver o trabalho. Eu dava aulas em campos abertos, sem grama.

Que tipo de atividade você conseguia desenvolver?

Através da bola, eu procurava motivá-los. Procurava ministrar algum tipo de atividade física, como um aquecimento mais forte. Sempre procurei fazê-los melhorar de rendimento, mas não tinha condição de avaliar aqueles meninos. Estavámos sempre no fio da navalha. Eu me recordo do Admildo Chirol (preparador físico da seleção brasileira nas Copas de 70, 74 e 78), que também era professor de Educação Física. Faleceu um garoto, que tinha uma doença congênita, durante uma aula dele, e lembro de todas as aporrinhações que esse episódio lhe causou. Nunca fui satisfeito para o trabalho, a partir do momento em que via que não conseguia produzir o necessário.

E nesse contexto, e talvez devido à atividade de treinador, é que você resolveu se desligar do cargo?

Sempre conciliei várias atividades. Por muitos anos, fui professor da Universidade Gama Filho, da Escola Naval, professor do Estado e técnico do Botafogo. Eu larguei a profissão porque, em 90, pedi uma licença não-remunerada para poder ir trabalhar na Itália. Não me deram, e aí larguei. Fui chamado de maluco.

Se continuasse, você poderia ter conseguido uma aposentadoria como professor.

Sim, mas uma aposentadoria de professor…Infelizmente, é uma profissão muito desvalorizada. É triste ver isso. Estamos no meio de uma epidemia de obesidade juvenil, de diabetes precoce. Antigamente, o diabetes alcançava as pessoas numa idade mais avançada. Hoje, isso ocorre mais cedo. E isso tem ligação com a desvalorização do professor de Educação Física. As pessoas veem o esporte como um jogo, mas o esporte é uma ciência.

Agora, tantos anos depois, você tem a oportunidade de dar alguma contribuição ao esporte. Sabemos dos problemas financeiros das administrações municipais, a queda de arrecadação provocada pela crise econômica. Nesse cenário, tem conseguido exercer um trabalho satisfatório?

Nosso trabalho tem algumas particularidades interessantes. A primeira coisa que fizemos foi contratar analistas de políticas públicas. A partir daí, estruturamos o trabalho. Temos parceria com a Secretaria de Educação. Há um programa da prefeitura, que dá desconto no IPTU em troca da cessão dos espaços dos clubes para 120 mil alunos da rede pública municipal. Eles utilizam os clubes num período ocioso das agremiações, das 9h às 15h. Belo Horizonte é uma cidade peculiar, com um monte de clubes espalhados pelos bairros. Com essa mesma ferramenta, o desconto do IPTU, conseguimos viabilizar o programa Vida Ativa, para pessoas com mais de 50 anos. E temos o projeto Superar, que dá atividade física para portadores de deficiência. Saltamos de um para três centros com essa finalidade. Aqui não tratamos de esporte de alto rendimento. É essa a política do prefeito, que se elegeu com esse discurso, do social.

No final do ano passado, figuras como o Alexandre Kalil e o João Doria, que se elegeram com um discurso de que não eram políticos, suscitaram uma grande curiosidade e expectativa. O Doria tinha o projeto de ser candidato à presidência pelo PSDB, mas esses planos parecem ter naufragado e o candidato deverá ser mesmo o Geraldo Alckmin. E o Kalil? Ao final do primeiro ano de seu mandato, o que poderíamos dizer sobre a performance dele?

São duas figuras totalmente diferentes. Tenho uma longa amizade com o Kalil, que começou quando eu era técnico da Atlântica Boa Vista (nos anos 80) e enfrentávamos o Atlético Mineiro. (O primeiro cargo que Kalil assumiu no Galo, aos 25 anos, foi o de diretor de vôlei, que exerceu de 80 a 83). Olha, basta dizer que já tinha sido convidado algumas vezes para ser secretário de esportes no Rio, e também de uma cidade paulista. Nunca me interessei. O que posso dizer é que sei para quem estou trabalhando. Fazemos aqui o que pode ser feito. Não teremos nenhum ginásio faraônico, nenhum Taj Mahal aqui em Belo Horizonte. Mas as pessoas estão praticando esporte na cidade. As coisas estão acontecendo.

Você foi um dos primeiros a peitar o Nuzman, e este ano ele foi preso. Você conseguiu enxergar, talvez, sinais de picaretagem antes dos outros?

Não vou falar em picaretagem. A Justiça está examinando isso. Eu simplesmente não concordava com o que ele fazia com o vôlei, e que depois foi fazer com todo o esporte brasileiro. Ele percebeu que, se investisse nas seleções brasileiras, teria mais patrocínios e exposição. E aí ele abandonou o vôlei. Sempre disse que o vôlei no Brasil não está à altura do vôlei do Brasil. Nossos campeonatos, nossa estrutura, ficam muito a desejar num país que é o mais bem-sucedido da história do vôlei.

Você já apontava problemas antes mesmo do Pan de 2007, numa época em que muita gente estava eufórica com grandes eventos.

Hoje há muitos arquitetos de obra pronta, questionando o chamado legado da Olimpíada. O Pan é um engodo maior que a Olimpíada. É um evento que não tem mais a importância que tinha na época em que eu era atleta. Naqueles tempos, o Pan era classificatório para a Olimpíada na maior parte dos esportes, e hoje isso não mais ocorre.

Demorou muito para que Nuzman viesse a ter problemas com a Justiça. Você vê nisso responsabilidade da imprensa esportiva, mais preocupada com os resultados dentro do campo ou da quadra do que na administração do esporte?

Os maiores responsáveis por essas questões são os atletas, técnicos, federações e confederações. Sempre tivemos certeza de que coisas erradas aconteciam. A culpa é dos que não tiveram coragem de botar o dedo na ferida. A mídia tem uma responsabilidade secundária, por julgar tudo com base em resultados. Se o clube ganha, a administração é uma maravilha. Se perde, é uma merda.
E hoje o esporte brasileiro paga o preço.

As confederações seguiram o mesmo caminho do vôlei. Todas foram atrás de resultados na Olimpíada. Preocuparam-se com as grandes coberturas, mas se esqueceram das fundações do prédio, dos pilares, do primeiro andar. O esporte brasileiro não existe segundo os parâmetros que o definem. Não temos uma massa de praticantes. É dessa massa que deveríamos extrair a qualidade.

Por falar em fundações, como andam as competições escolares? Trata-se de uma boa vitrine para os clubes detectarem talentos, não é? A trajetória de muitos atletas importantes do Brasil ganhou outros contornos a partir de competições escolares.

Mais de 90% dos atletas que se destacam em competições escolares já são filiados a clubes. Se quisermos fazer do esporte escolar a estratégia de desenvolvimento do esporte no Brasil, teremos que investir em quadras, em estrutura. O que se gastou com Pan e Olimpíada seria suficiente para esse investimento. Perdemos uma oportunidade.

Como estão as competições escolares em Belo Horizonte?

Desde 2001, a prefeitura terceirizava os Jogos Escolares. Uma empresa os realizava. Assumimos de novo essa tarefa, e tivemos recorde no número de inscrições. Vamos fazer de tudo para incrementar esse competição, e, obviamente, vamos ter crescimento.